Millkau nesse tempo cismava, enquanto o sono não o arrebatava para o esquecimento. Tinha saboreado as lendas ouvidas aos tropeiros e parecia-lhe ter arregaçado o véu que cobria a alma daqueles homens, e desfrutado deliciosamente as paisagens distintas de cada espírito e os panoramas longínquos que foram os quadros da infância de cada povo gerador. Nas lendas alemãs Milkau via passar o Reno, como um grande rio sagrado, que foi o centro e o nervo do mundo germânico, todo cheio de encantamento, e cujas louras ninfas eram as espumas das próprias águas. Ele via os quadros recuados no tempo e os quadros novos da época medieval, bruxas, cavaleiros andantes e castelos. Todo o idealismo da raça estava ali, e o que nascera nas águas do rio, criando fantasias e mitos, mantinha-se inalterável, os novos deuses latinos, penetrando no seu espírito, transmudaram-se em divindades bárbaras, as suas santas eram aquelas mesmas fadas do Reno e os santos velhos deuses sombrios e batalhadores... Na lenda do curupira outro mundo se descortinava, que era toda a alma do tropeiro maranhense. Ali estasvam a mata tenebrosa, as forças eternas da natureza que assombram e cujo símbolo era essa divindade errante que anima as árvores, que sacode do torpor tropical as feras ou que protege a natureza, intimando o homem, seu perpétuo inimigo. Ela espanta, vinga-se e beneficia, transveste-se em mil figuras, em criança maligna, que é a sua encarnação preferida, em animal ou vegetal, conforme a astúcia ou a força o exigem... Milkau sentia naquelas lendas o encontro dos vários aspectos dos feitiços e cada um traduzia os instintos, os desejos, os hábitos diferentes dos homens,
Graça Aranha
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